Mote do exercício: descrição do percurso casa - trabalho
À noite escolho sempre o vestido. Não por vaidade, apenas
por ser mais confortável. Ontem, por ser já muito tarde e por chover
desalmadamente, fiquei na dúvida. Talvez as calças fossem uma escolha mais
inteligente. Abri o armário e os colares ecoaram violentamente na porta de
madeira, em três intensidades distintas até se silenciarem inertes. Talvez não
tenha sido assim tão boa ideia pendurar ali as bugigangas todas. Bom, dizia eu, abri a porta do armário e nem
um único par de calças passado a ferro. Estava deliberada a sentença sem
possibilidade de recurso: hoje usaria o vestido. Aprecio quando o Universo
(para os mais esotéricos) ou o acaso (para os mais descrentes) tomam decisões.
O acaso tinha-se decidido hoje pelo vestido e eu nem por momentos o desejei questionar.
Agradeci-lhe apenas.
Tinham passado doze dias desde o meu último vôo e a rotina
que automatiza os preparativos de forma irrepreensível encontrava-se já algo
esbatida. Por ser nestas alturas que deixo para trás coisas importantes como as
hawaianas ou a escova de dentes, fiz a mala com o maior dos cuidados. Fechei-a,
segura de que não faltava nada, e transportei-a em peso até à porta para não
incomodar a chata da vizinha de baixo. Enfiei o vestido pela cabeça,
contorci-me para chegar ao fecho das costas, corri-o de uma só vez até ao
pescoço com a prática de uma surfista profissional, e ajeitei-o ao espelho
enquanto descontraía os braços do esforço. À excepção do fecho traseiro, o
vestido é de facto uma peça descomplicada. Não é preciso entalar constantemente
a camisa na saia de cada vez que se levantam os braços. Há quem a prenda nos
collants para prevenir o incómodo, mas eu ainda não me rendi a essa solução,
com a mesma convicção com que me recuso a usar touca de banho quando não quero
molhar o cabelo. Dá jeito sim senhora, mas não há auto-estima que resista a
qualquer uma das duas imagens. Enquanto não se proibirem os espelhos, ninguém
me apanha com a camisa presa nas meias, ou com uma touca de banho de elástico
franzido a vincar-me riscos na testa.
Naquele dia tinha lavado o cabelo, substituído a camisa pelo
vestido, e tinha inclusivamente tido o cuidado de não arrastar as rodas da mala
no soalho de pinho, para não aborrecer a Graça. A Graça aborrece-se com
facilidade e não me custa nada facilitar-lhe um serão em paz, pelo menos
enquanto a minha coluna colaborar. Para não lhe perturbar a telenovela,
divaguei então pela casa de vestido formal e chinelos de pêlo, enquanto tomava
as últimas providências para que tudo ficasse tranquilo na minha ausência.
Janelas e estores bem fechados para não entrar água, um breve aceno de perdão
às bubanvílias do terraço por deixá-las entregues à sua própria sorte e ao mau
humor do vento, luzes apagadas, televisão desligada no botão para poupar meia
dúzia de cêntimos que não fazem diferença a ninguém mas que o planeta agradece,
e tudo mais que me garanta as coisas no mesmo sítio quando voltar a casa.
Talvez não as buganvílias.
Neste vai e vem de guardiã, mesmo de chinelos felpudos, é
impossível evitar por completo o chiar da madeira. Sei bem onde mais lhe dói e
evito lá pisar, mas o soalho está velho e já lhe sobram poucas zonas sem mágoa,
pelo que o bem estar da minha vizinha de baixo não depende apenas da minha boa
vontade, mas também da saúde do desgraçado de pinho.
Por sentir alguma agitação no andar de baixo, detive-me
alguns momentos antes de sair a porta e dar início ao momento mais temível para
a telenovela da Graça: descer três andares de escadas ínvias de madeira, com
uma mala de doze quilos nas mãos, e sete centímetros de saltos nos pés. Ainda
considerei a hipótese de descer as escadas descalça, não se desse o caso de ter
as duas mãos ocupadas, mas entre evitar o conflito com a vizinha, ou o ridículo
de ser apanhada com os sapatos pendurados na boca, decidi-me por manter a minha
dignidade.
Com a mala pousada no chão e a porta ainda fechada, subi
para cima dos sapatos que me aguardavam à saída, chutando os chinelos para o
lado, num (dois, neste caso) trejeito(s) decidido(s), respirei fundo, levantei
a cabeça e deitei a mão à chave. Abri a porta, em bicos de pés passei
cuidadosamente a mala para o lado de fora, e tranquei a porta com os ombros
novamente encurvados, como se tal postura abafasse o barulho.
- Endireita as costas! Onde já se viu, uma rapariga da tua
idade com medo de uma vizinha.
- Não é medo, é respeito.
(Tinha aprendido esta desculpa em pequena durante as férias
de verão na Ericeira, e desde então usava-a sempre que me dava jeito mesmo que
não fizesse sentido nenhum)
Endireitei as costas, enchi novamente o peito de ar, e
lancei-me às escadas num sapateado inevitável de quem usa sapatos dois números
acima, para prevenir as dilatações próprias da altitude. Quem apenas me
ouvisse, nunca diria que me esforçava por não fazer barulho, mas quem me pudesse
ver, não teria qualquer dúvida. A carteira a tiracolo atirada para trás das
costas, as duas mãos na pega da mala a tentar equilibrar os doze quilos por
forma a não arruinar o verniz dos degraus de madeira, nem romper os collants,
as pontas esvoaçantes do lenço de seda a taparem-me a visão (quem deixou a
porta da rua aberta?), e as passadas largas (mais humilhantes que um par de
sapatos na boca) a desenharem círculos vagarosos no ar, para não falhar os
degraus, nem deixar cair os sapatos. Apesar do esforço, era inevitável que o
salto batesse primeiro no degrau e eu sabia que era quase impossível que
quarenta e cinco tacadas daquelas passassem impunes aos ouvidos da temível
Graça.
(Engraçado ela chamar-se Graça).
Por volta da décima segunda chinelada, a minha respiração
treinada deixava sempre de conseguir controlar a ansiedade. O coração
disparava, os mais pequenos ruídos pareciam-me o som da porta da vizinha a
abrir, e a descida inicialmente pausada entrava em modo de aceleração
descontrolado, que só por mero acaso nunca resultou em acidente. Saltando os
degraus aos pares, aterrei cá em baixo, desfeita. O rabo de cavalo pendurado de
lado, o rímel já levemente desbotado pela pele humedecida de medo, e claro, as
meia rasgadas.
Dei-me conta que nem sequer tinha posto o lenço hoje, no
momento que a porta da rua se abriu.
- Boa noite menina. Mais uma viagenzinha. Tem de ser, não é?
Tenha cuidado, olhe que chove que Deus a dá.
- Obrigada Graça, até sexta. - Respondi com um enorme
sorriso apavorado.
Tenha cuidado? Tsst... Como se a chuva fosse coisa para me
amedrontar.
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