quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O Constrangimento do Moinho


Sintra, 3 de Novembro de 2011

Mote do exercício: Amor, Constrangimento, Alma, Gato e Moinho

O Constrangimento do Moinho

Dona Henriqueta, Moleira, habituou-se desde muito cedo à exigência do vento. Os seus oitenta anos, bem contados, desde o dia em que tinha aprendido quantos dedos tinha nas mãos, tinham-lhe ensinado a esperar que as pás rodassem o tempo suficiente para moer o milho que ali entrava, rijo, contrariado, e que de lá saía tão macio e apurado. 
Henriqueta comparava o vento à sua alma, transfigurando os cereais em farinha, esmagando uma grande paixão entre duas pedras, teimosas que, houvesse vento em fartura, haveriam de a transformar em amor. Mesmo que para isso tivesse que prender o longo cabelo com um nó bem dado, que só desenrolava na intimidade, e que ainda assim agarrava com um lenço bem apertado, tanto era o medo que as rajadas o libertassem, e o desatassem, antes de tempo. 
Henriqueta sentava-se num banco de madeira à porta do moinho, afagava o cão, que também sabia, tão bem quanto ela, quantas voltas tinham as pás de dar para que estivesse tudo reduzido a pó e ficavam os dois a observar o gato que, pensativo, distante, encolhido e, acima de tudo, alheio ao que se passava dentro daquela parede redonda, esperava o vento passar. 
O Constrangimento do moinho perdia-se na memória daquele monte, rodeado de planície, onde os campos eram plantados e trazidos à moleira, que os esperava atenta e solitária desde o dia em que ficou viúva, quase esquecida dos netos que nem sempre se lembravam do seu nome, mas de quem sabiam herdar uma forma de tacto, rarissimo na condição humana, para distinguir quando o vento era mais espesso ou mais fino. 
Mesmo antes de morrer, quando já não havia mais milho para moer, mesmo no dia em que o vento parou, mesmo antes das velas das pás se rasgarem, Henriqueta despediu-se do moinho e entendeu o seu constrangimento de ali estar perdido, ao frio, tanto tempo, à espera de a levar.

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