domingo, 13 de novembro de 2011

Se ninguém batesse à porta o morto morreria em vão



Mote do exercício: escrever sobre um assunto sem nunca o nomear

Lá fora chovia sem se ouvir. Como se a água se evaporasse antes de chegar ao chão que, mesmo assim, estava molhado. Os carros passavam devagar sussurrando com as paredes dos edifícios.
Lá dentro, naquele quarto escuro, com quase ninguém, as paredes reflectiam os olhares dos carros que, curiosos, iluminavam a cómoda de madeira gasta e corroída pela solidão, que fingia cegar para não ver, o que estava à sua frente.
De repente, sem aviso, alguém tocou violentamente à porta.
- Rui! Estás aí? - Disse uma voz grossa e segura - Rui! Por favor abre a porta - continuou enquanto batia outra vez na porta que vibrava, frágil.
Lá dentro a cómoda assustou-se.
- Rui, abre a porta, pelo amor de deus!
- Acalma-te Luís, ainda partes a porta - acrescentou uma mulher que, pelo tom de voz parecia ser baixa e para quem estava do lado de fora via que agarrava o braço de Rui com as unhas demasiado arranjadas.
- Deixa-me Maria, deixa-me. Alguma coisa aconteceu. O Rui nunca desapareceria assim sem dizer nada.
- Luís, Eu sei que te parece estranho dizer isto, mas talvez o teu irmão não queria que o encontres. Já pensaste nisso?
- Não, não pensei. Não faz sentido nenhum. O Rui ligou-me hoje de manhã a dizer que ia fugir, que tinha que desaparecer, que o andavam a seguir, que o queriam matar.
- Que horror! - Gritou Maria enquanto se afastava dele, tentando não partir nenhuma unha - Como é que é possível o Rui estar metido numa coisa dessas?
Se a cómoda acreditasse em deus, teria rezado para que aquela porta fosse blindada. Depois de ouvir alguma agitação no patamar das escadas, acalmou-se ao ouvir o toque da campainha do vizinho, seguido dos passos do Sr. Rogério que teimava em andar calçado com os seus melhores sapatos, de sola dura, mesmo sabendo perfeitamente que não iria sair mais de casa. 
- Quem é? - Gritou o Sr. Rogério sem abrir a porta.
- Boa noite, desculpe incomodá-lo tão tarde, mas é uma emergência - respondeu Luís nervoso - Sou irmão do Rui, que mora aqui no apartamento ao lado.
- Rui? Qual Rui? Não conheço nenhum Rui.
- Pode abrir a porta por favor? - Pediu Luís mais calmo.
- Mas eu não conheço ninguém no prédio.
- O meu irmão desapareceu e estou preocupado. Talvez você tenha ouvido alguma coisa, ou visto alguém a entrar ou a sair do apartamento dele. - Fazendo uma pausa enquanto respirava fundo - O meu irmão é magro, cabelo grisalho, olhos cor de mel, sempre vestido de fato e gravata… Trabalha numa companhia de seguros na baixa. Já o deve ter visto, não ?
Depois de alguns segundos de silêncio, sem aviso, ouviu-se a chave a rodar na fechadura e, mesmo antes de estalar o trinco com o polegar, Rogério olhou para o chão e sorrindo para si próprio, congratulando-se da sua sabedoria infinita, orgulhou-se, para sempre, de estar com os melhores seus sapatos.
Até a cómoda, no apartamento ao lado, se arrepiou do outro lado da parede, quando sentiu Rogério a esfregar os sapatos nas calças, no mesmo segundo em que ajeitou o cabelo seboso, oleoso que lhe tapava o olho esquerdo, enquanto espreitava pelo óculo da porta.
Assim que Rogério entreabriu a porta, mostrando apenas meio bigode, mal-amanhado, contrastando, miseravelmente, com o brilho dos sapatos, Maria, assustando-se, abriu os olhos de par em par e agarrou-se ao braço de Luís, ao reparar no encardido, avermelhado e seco que jazia nas unhas do vizinho, da única mão que mostrava. 
Se a cómoda acreditasse em deus, rezaria para que a sombra do objecto que Rogério tinha na outra mão fosse apenas o pente com que se tinha acabado de pentear.

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